Fernando Horta, no GGN
Em 1923, após conseguir, por decreto, um ano de poder total na Itália, o regime fascista de Benito Mussolini fazia uma reforma educacional, também chamada de Reforma Gentile. Giovanni Gentile não era propriamente um fascista, mas o fascismo não tinha projeto educacional próprio e, como costuma acontecer, os fascistas e os liberais encontraram um ponto comum. A Europa dos anos 20, aquela penalizada pela primeira mundial, empobrecida pelos anos de luta entre sociedades capitalistas, via com assombro a mais antiga monarquia absolutista ser colocada no chão por camponeses e trabalhadores.
A reforma de Gentile começava por abrir a educação à “iniciativa privada” e, através da “livre concorrência”, “contribuir para o crescimento da educação italiana”. Ao mesmo tempo, pregava a diminuição do número de escolas públicas em troca da criação de uma “prova de estado” em que, supostamente, o governo continuaria controlando o “nível” da educação. A este projeto se uniu, sem qualquer problema ideológico, o fascismo. Desde que na sua reforma, Gentile diferenciasse entre a “verdadeira política” e a “baixa política” nas escolas. A “verdadeira política” era aquela que ensinava valores patrióticos e nacionalistas, que detém a “vontade criadora da vida nacional” e a “baixa política” era aquela “dos interesses privados, dos míopes, egoístas e daqueles que não sabem ver a Nação como sujeito da atividade política”.
Para os fascistas foi fácil transformar os substantivos em ideias cada vez mais abstratas. Assim, a ideia de “liberdade” deveria ser cultuada como um fim e não como um direito inerente a todo estudante ou cidadão. As liberdades individuais somente poderiam ser exercidas por intermédio do Estado e da grande união nacional. Alguém com “liberdade” colocava em risco a noção de liberdade coletiva, que era maximizada sempre na figura do Estado. Este mesmo caminho, de fazer os direitos se tornarem ideias abstratas, foi sendo usado para a “igualdade”, para a “liberdade de opinião” e etc. Se advogava que a escola, tal qual o Estado, deveria ser “neutra”. Ensinar “conteúdos”, “dar informações”, mas abster-se de qualquer educação a partir daí.
Gentile diria em março de 1924 que “Existe um outro liberalismo, amadurecido no pensamento italiano e no pensamento alemão, que afirma ser um absurdo esse antagonismo fantástico entre o Estado e o indivíduo. (…) Para esse liberalismo, a liberdade é, sem dúvida o fim supremo e a regra de toda a vida humana; mas isto, somente, na medida em eu a educação individual e social se realiza, produzindo em cada indivíduo essa vontade comum, que se manifesta como lei e, consequentemente, como Estado. (…) Estado e indivíduo, nesta perspectiva são um (…).”. O passo em direção ao fascismo não foi demorado nem difícil de ser dado.
Gentile reduziu o drasticamente o tamanho do “Ministero dela Pubblica Istruzione”, demitindo diretores e coordenadores, ao mesmo tempo que passa o poder de controle sobre a educação para as localidades regionais. Aos poucos, os mais qualificados pedagogos e professores foram sendo demitidos e o gerenciamento da educação passou às mãos de uma série de postos autoritários e sem a devida formação escolhidos localmente: os provveditorati. Estas figuras eram como “corregedores locais” de ensino, com poderes para afastar professores, mudar currículos, questionar diretores e pedagogos baseados numa ideia de “consciência nacional” que deveria “afastar as utopias”. Mais adiante na reforma, Gentile vai suprimir qualquer participação de professores na escolha de diretores e coordenadores, alcançando o objetivo fascista de controle total sobre a escola.
A reforma tornou lei certos “princípios morais” que os professores deveriam ter. O professor deveria consagrar “todas as forças de seu espírito e de sua cultura, no quadro de interesses políticos e sociais que são o domínio do próprio Estado”, deveria ter “uma relação de fidelidade” para com o Estado e “cumprir a sua missão”, não sendo possível “que o funcionário introduza na organização administrativa (…) um espírito de desacordo” que “secretamente tem a intenção de contribuir para a destruição das organizações”. O professor deveria ser “o guardião leal e o sustentáculo consciente” de todo este sistema.
A escola foi dividida e diferenciada. Aquelas desenvolvidas para as classes baixas chamaram-se “classi di integrativi di avviamento professionale”, e estavam voltadas à criação de mão-de-obra apenas. Tinham número menor de matérias e eram construídas para assimilar um número muito grande de alunos em cada sala de aula. As escolas privadas, por outro lado, passaram a acolher os filhos das elites econômicas e políticas com uma diferente organização e oferta de matérias. A educação era usada para manutenção de castas sociais através de um conceito meritocrático, pois supostamente nestas escolas tinha-se o objetivo de “selecionar os alunos mais inteligentes e dispostos e assegurar-lhes a melhor instrução”. E ficava, como denunciou o marxista italiano Antonio Gramsci, garantida a reprodução de um estado desigual através do processo educacional. Em pouco tempo, as diferenças sociais seriam entendidas como “normais” e a sociedade diferenciada como “natural”.
Em 1926, o diretor do Bureau International d’Education, o suíço Adolphe Ferrière, diria, após uma visita às escolas fascistas: “As escolas que nós visitamos impressionavam, sobretudo, e desde o início por sua arte e por sua limpeza excepcionais. Limpeza também entre os alunos. Aventais brancos nas meninas, azul nos meninos, todos com nome bordado em evidência. Disciplina, também. A saudação romana, braço direito erguido, parte como um foguete coletivo” na Escola de Gentile “não predominavam mais o verbalismo e o intelectualismo estéreis”, mas “a vontade firme, viril e disciplinada”.
Enquanto isto, Gramsci denunciava nos “Cadernos do Cárcere” que:
“A multiplicação de escolas vocacionais [voltadas para formar para o mundo do trabalho] tende a perpetuar as diferenças sociais e tradicionais (…) com a impressão de estar sendo democrática. Os trabalhadores se transformam em cada vez mais especializados e os camponeses em agrônomos. Entretanto, democracia, por definição, não pode significar meramente que o trabalhador sem especialização se especialize. Precisa significar que cada CIDADÃO possa GOVERNAR e que aquela sociedade o coloque, ainda que em possibilidade, na condição geral de poder exercer o poder.”
Temos aí dois projetos de escola. Um que é buscado, de forma assustadoramente idêntica ao fascismo, pelas reformas de Temer e pelo “Escola sem Partido”. Uma educação que visa a técnica estéril com a qual o trabalhador se qualifica, mas seu futuro é somente e sempre manter-se trabalhador. Seu saber é sempre um saber para os outros e nunca para si. Um saber que gera lucros cada vez maiores para seus patrões, mas não gera a possibilidade de que ele ou seus filhos venham, um dia, a se emancipar. O outro tipo de escola, a que Gramsci defendia, não se restringe aos saberes técnicos. Uma escola que permite que o aluno se perceba parte de um construto político e social no tempo. Que se veja como resultado de um processo político e econômico não acabado em que ele é senhor de seu destino. Uma escola crítica, uma escola emancipatória.
A escola, ela sim, é o caminho para o futuro. Ao escolher o modelo de nossas escolas escolhemos nosso futuro. E que nossos netos nos perdoem pelo nosso silêncio submisso.